quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Trecho do livro “Valores. O Bem, o Mal, a Natureza, a Cultura, a Vida”- Francesco Albertoni (Editora Rocco – Rio de Janeiro – 2000). Página 16:
…“Podemos pretender que haja um ponto de observação mais alto, um rochedo do qual observar o correr do rio? Ou estamos inexoravelmente imersos no fluxo e podemos apenas ver e aceitar as ondas da corrente que nos abate e nos arrasa? E devemos crer que não exista nenhum progresso, nenhuma meta, nenhuma coisa nobre ou sublime, nenhum tribunal a que apelar para haver justiça? E a moral que nos pede amor, paz e benevolência é uma piedosa ilusão, um devaneio para fugir do sofrimento? Para se afastar da lúcida consciência da solidão, da dura necessidade de competir que, ao contrário, é a própria essência da vida e da evolução? Uma moral que, por sorte, não seguimos, que não levamos a sério porque significaria a nossa condenação em um mundo em que se impõem e vencem somente a astúcia, a luta, a violência e o ardil?
Ou não é verdade, nunca foi verdade? Porque, como anunciam Pitagoras e Mahavira1, Sócrates e Jesus Cristo, o homem é emancipado da natureza. Tem livre-arbítrio e tem dentro de si a aspiração por um mundo perfeito, por um ideal de harmonia e de paz que constitui a sua meta final. A essência do homem, a sua especificidade e a sua força não são nem a adaptação nem a luta pela sobrevivência, mas sim o sonho de uma vida superior. A moral como ímpeto vital, a moral como espírito, como tendência para o alto, como transcendência de si mesmo.
O que é moral? Uma concepção nos diz que ela não tem autonomia, porque é apenas uma das manifestações, um dos estratagemas da seleção natural. Nós estamos condicionados, determinados, pensamos em projetar o futuro em termos culturais e espirituais, mas somos apenas lacaios de nossos genes que nos fazem inteligentes e sociáveis para prolongar a sua sobrevivência.
A outra concepção, aquela que deu origem a nossa civilização, nos diz, por sua vez que a moral se opõe às leis naturais da evolução, molda-as, dirige-as ou, como queriam Schopenhauer e os gnósticos, tenta logo derrubá-las.
Mas existe uma terceira solução. Que sejam verdadeiras ambas as posições, que a natureza humana seja constituída desse desencontro irremediável, dessa oposição sem fim. E que seja exatamente essa, no homem, a realidade da evolução. A moral é, a um só tempo, expressão de evolução e oposição a ela, continuação e destruição2. Porque a continuação advém apenas da destruição, da negação como um pulo à frente, um salto evolutivo. Porque a evolução não é só adaptação, mas também ruptura, inovação, expulsão, utopia. E por isso, xeque-mate, nova expulsão, empurrão para o novo, o mais alto, o sublime.
Há um único processo, que se desenvolveu no curso de milhões de anos, o processo evolutivo que produziu a natureza animada. E essa natureza animada, já desde os seus albores, desde a molécula, desde o protozoário, tem estado em tensão para o alto, em ruptura consigo mesma, em superação. Com a cumplicidade do homem e da consciência, esse processo se fez cultural. A evolução contínua como cultura, como ciência. O ser humano teve que se destacar da natureza, de se contrapor a ela, de sonhar com uma pátria espiritual para progredir. Mas essa pátria espiritual brotou, ela própria da evolução.
Nessa nossa fase histórica, o homem começa a se reconciliar com as partes da natureza que tinha recusado, de que se havia destacado, e as compreende, reencontra-as em si mesmo. Adquire consciência da sua unidade com o mundo. Nós estamos entendendo que o mundo, a natureza, não é só a nossa casa, mas, acima de tudo, o nosso corpo. E para nos conhecermos a nós mesmos devemos hoje resolver o nosso fundamento de vida. Talvez porque a espécie humana esteja para dar um novo salto evolutivo à frente. Ou melhor, é a natureza que está para dar um novo salto à frente, por nosso intermédio. E a moral, a reflexão moral, é parte desse processo, como a ciência, como a tecnologia, como a manipulação genética.
Hoje vivemos a experiência de uma nova aliança com a natureza. Sentimo-nos parte da evolução. Estamos quase tentados a nos abandonar ao seu inexorável fluir, porque a evolução acontece pela oposição de um ideal ao existente, pela escolha contínua, pela criação das metas.

A moral é sempre um observador no exterior, é sempre um julgar do exterior. Ela é o modo pelo qual a própria natureza se julga “do exterior”, se transcende. Cada indivíduo de per si, então, cada indivíduo que se sente determinado, arrastado como um graveto numa corrente infinita, não só pode, mas deve julgar “do exterior”. Nós estamos no mundo, somos parte do mundo, o nosso corpo é o mundo. E ao mesmo tempo como indivíduos, somos “lançados ao mundo”. Nós somos a “consciência do mundo do exterior”. A natureza conta apenas com os indivíduos, para se julgar, para se ver, para se programar, para querer, para sonhar. O indivíduo é irredutível para o mundo. A experiência que temos da dor, da injustiça, da estupidez, do erro, nos impõe responder como se a responsabilidade fosse toda nossa.

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